Víbora 01- Picada de SAGAL -O Cão desertor e a menina
Memórias da Guerra Colonial Por:
Manuel Neves Silva-Furriel Miliciano
O meu pelotão tinha sido deixado a meio do caminho
com a missão de emboscar trilhos que cruzavam a picada. Outros dois grupos de
combate da minha companhia continuaram integrados na coluna logística até
SAGAL, uma antiga fábrica da Sociedade Agrícola Algodoeira, a norte de Mueda,
agora transformada em Aquartelamento Militar.
Por
ali nomadizámos deambulando sítios e caminhos, patrulhando as margens da picada
e por ali dormimos duas noites, montámos emboscadas sem sinal dos Frelos,que nos quiseram evitar. Era mais
fácil para eles flagelarem as viaturas em andamento e semear trotil pelo chão.
Dois dias depois fomos integrados no
regresso das viaturas agora alijadas de cargas na torna viagem de SAGAL a Mueda
. Tomámos assento nas caixas das berliets
e seguíamos rumo a Mueda, quando fomos visitados por um heli que nos atirou com pão, água e o correio.
Era divertido ver os sacos de água de cor
amarelada em queda livre na nossa direcção. Estávamos ávidos de água e
sequiosos de correspondência da metrópole. O Saco do correio caiu incólume, as
cartas não se romperam. Feita a distribuição chamada pelo Bonina de acordo com
os nomes dos endereços, cada um ia abrindo e lendo com sofreguidão notícias da
família, das namoradas, das novidades das suas terras na longínqua metrópole. O
saco ficou vazio nas mãos do alferes, que ainda o sacudiu boca abaixo, uma e
outra e ainda outra vez enquanto eu esperançava as minhas cartas, que
refractárias, não apareceram mesmo. Refeito do desgosto, alegrava-me com a
alegria dos outros.
Com a água dos poucos sacos que resistiram
ao impacto com o chão reabastecemos os nossos secos cantis. Senti saudades e
desejos daquela água límpida e sempre fresca no Verão na Fonte dos Castanheiros
em Leiria.
Foi assim neste “Toca a andar! Toca a
andar!”, que estas paragens são sempre perigosas que retomámos a marcha rumo a
Mueda. Saltei para cima da terceira viatura que já marchava e onde para além de
outros, os soldados da minha secção, agora rendidos na exaustão da tarefa de
detecção de minas, se aninhavam em posição de defesa, armas nervosas apontadas
à mata que flanqueava a picada, abriam e liam as suas missivas.
Um
dos soldados no seu gesto desajeitado deixou cair do envelope ao chão da
viatura a fotografia duma linda rapariga, junto aos meus pés e ao alcance da
minha mão. Apanhei-a, e preparava-me para lha entregar enquanto intentei dizer:
-Tens
uma namorada muito bonita.
Digo,
intentei porque de facto metade da frase não chegou a ter estatuto de voz e nem
ele chegou a pegar a foto, nem eu cheguei a dar-lha e assim a linda moça não
quedou nem nas minhas mãos e nem tão pouco nas mãos do seu namorado. Ali ficou
no chão, abandonada.
As
rajadas de kalashnikov troaram pelo
lado esquerdo, as balas assobiavam ao nosso lado e por cima de nós. Foi saltar
da viatura abaixo, correr, apontar a G3 para aquele lado e puxar, puxar, puxar
o gatilho, olhos postos na mata e deu-se início ao diálogo das armas.
Foram
sons graves e foram sons mais agudos. Agudos, os das kalashes, mais gravem os das G3. No meio deste concerto
ensurdecedor, irritante, eu ouvi uma voz forte, gritante urgente:
- Cuidado Furriel!
Volto
o olhar e vejo o rodado esquerdo traseiro da berliet desgovernada, assaltar-me o corpo. Num gesto rápido apoio a
coronha da arma no chão e estiro-me para fora do atropelamento evidente. Viro a
cara de novo para o outro perigo, o das armas russas, quando a roda da viatura
pisa a arma fletindo-a sobre o meu peito.
E
aqui eu deixei de ser. Deixei de ouvir o cantar das armas que foi-se
extinguindo gradualmente nos meus ouvidos e fui adormecendo num sono relaxante,
fresco, agradável.
Entrei
no Nirvana. Fiquei esquecido de mim.
Recuperei os sentidos quando uma chuva forte
se abateu sobre este campo de batalha qual agulheta de bombeiros rescaldando o
inferno.
Ouvi uma voz:
-Aquele gajo já “lerpou”.
Pensei: - Porra! Aquele gajo era eu. E teria
“lerpado”?
Apalpei-me, vi se me sentia. Sangrava da
boca e do peito. Tentei levantar-me e não conseguia. Fiquei agarrado ao matope,
no chão. Demorei a perceber onde estava. Apercebi-me que a emboscada tinha
terminado. Os “Frelos” tinham dado de “frosques”.
A meu lado a minha arma G3,minha amiga e
namorada, estava deformada. Tinha dobrado pela janela de ejecção. Não tivesse
encontrado o meu corpo e estaria direita, intacta,funcional.
Oficiavam agora as mãos e o saber do Furriel
Enfermeiro Elias. Tentava circundar-me o peito com ligaduras e apertava-as como
quem fecha um saco de batatas. A dor estava a ficar intolerável.
- Não
apertes mais essa merda, Elias!
Percebi
que me era difícil falar, enquanto o Enfermeiro alheio à minha súplica
continuava a rematar o nó, só desistindo do intento, quando ouviu na minha voz
pausada,arrastada débil e difícil: - Elias! Filho da puta, para com essa merda.
Laxou o nó, quando já se ouvia o bater das
hélices do helicóptero, que me transportou para Mueda.
Á chegada, quando me carreavam do heli para a Enfermaria, vi acima da
minha maca a cara do sargento Von Gilsa, da minha companhia mirando-me e
afastando-se em gestos horrorizados. Terá imaginado que eu tinha o cabedal
roto.
Nada
lhe pude dizer e nada lhe disse, o esforço de falar bloqueava-me as palavras
Assim fui despejado numa cama de colchão
ensanguentado por alguém que ali sofreu, antes de mim. Tentei em vão
transferir-me para a cama ao lado com menos marcas de sangue. Os movimentos
aceleravam a dor. E desisti do intento.
Depois das radiografias, o diagnóstico com o
major médico de serviço:
-Você
tem duas costelas partidas.
Aqui, nesta enfermaria estagiei a
recuperação de um mês de colagem dos ossos.
Tinha
sido o único atrapado dessa frela
emboscada.
Desse
episódio poderia constar no Relatório da Acção, uma G3 danada e o
desaparecimento em combate do cão Barata, propriedade do meu camarada Furriel
com o mesmo nome.
Soube depois, já após o 25 de Abril que o
Barata, o cão baralhado com a “festa”, tinha desertado para o lado da Frelimo e
por lá ficou. Assim mesmo, agora com o estatuto de Cão desertor. Tínhamos
perdido uma mascote!
A foto da madrinha de guerra nada sofreu, protegida que estava com o taipal da viatura. Hoje será com certeza história contada aos netos por um qualquer avô, veterano daquelas guerras.
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