E as crianças??????
Moçambique, Agosto de 1967 a Setembro de 1969.
Lembro-me de alguns nomes e de alguns rostos, sobretudo quando sorriam
e apareciam os dentes brancos e os olhos brilhavam. As minhas
crianças, as nossas crianças, as de Muidumbe, de Nangade,
de Palma, de Mueda, de Moatize, de Tete e de todas as aldeias e
lugarejos por onde passamos, durante os nossos vinte e seis meses
africanos. Nós é que os baptizávamos, os nomes
originais eram difíceis de pronunciar. Lembro-me do
Eusébio em Nangade, do Pedro em Muidumbe, da Rita em Mueda.
Aparecem alguns rostos nas fotografias a preto e branco que ainda me
restam, dentro de um álbum cuja capa já desapareceu.
Revejo a Rita a correr em direcção da palhota com um
pacote de bolachas de água e sal nas mãos que o
Felgueiras lhe tinha dado, vimo-la depois a dividir as bolachas com os
outros irmãos. As crianças, as nossas crianças
às quais nunca dissemos não, mesmo quando a comida
não era muita. Bastava um pedaço de pão e o resto
no nosso prato de alumínio, para ver aqueles olhos a brilhar.
Choramos, ao ver uma criança doente, para a qual não
havia medicamentos na nossa enfermaria. Tratamos das feridas do
Eusébio, quando foi obrigado a tomar um banho de mercúrio
misturado com água, remédio inventado pelo nosso
enfermeiro, conhecido pelo “mata gente.” Revejo um
aldeamento chamado Zobué, mesmo junto à fronteira do
Malawi. Tínhamos acabado de chegar, depois de várias
horas de picada, cheios de pó, sede e fome. Paramos as viaturas
junto de um Imbondeiro enorme e começamos a abrir as caixas das
rações de combate. A água quente do cantil
não nos matava a sede e o pão que trazíamos dentro
da mochila estava ressequido, duro que nem uma pedra. A
refeição começava pela lata de chouriço,
depois a lata de sardinhas e finalmente a barra de doce que normalmente
era de laranja. Quando acabamos, estávamos rodeados de latas
vazias e de embalagens de cartão como era habitual nos locais
onde parávamos para comer. Primeiro apareceu um miúdo que
pegou numa lata de chouriço e com o dedo tentava agarrar um
pouco da gordura da mesma, levando-o depois á boca. Foram
aparecendo aos poucos, barrigas dilatadas pela má
nutrição e os umbigos inchados, quase nus. O Primeiro a
falar foi o Sousa.
- Quem tiver uma lata a mais e um bocado de pão dêem aos miúdos.
E assim foi. Apareceram uns vinte, um deles trazia nas mãos um
coco para trocar por outra coisa qualquer desde que fosse
comestível, outro tentou vender-nos castanha de caju, compramos
sem sabermos o que iriamos fazer com as castanhas ainda por assar.
……. E as crianças? Aquelas que são as menos
culpadas desta guerra.
Chamam-nos…blanco….blanco….tlopa….tlopa…e
nós rimo-nos. Muitas das vezes somos obrigados a impor a ordem a
dizer “ já chega”…… mas eles continuam
a rir. Agarram-se á nossa farda e o olhar pede-nos mais um
bocado de pão.
Nós, também ainda somos quase crianças. Não
pedimos pão nem “ água de Lisboa,” desejamos
que o tempo passe depressa e que esta guerra não nos transforme
em homens insensíveis. Lembro-me do Eusébio em Nangade, o
nosso apanha-bolas dos jogos de futebol, os quais acabavam quase sempre
á porrada, por causa de uma aposta de vinte e cinco
tostões, cada um. Quem ganhasse o jogo levava o dinheiro. E os
putos de barriga grande a verem a “tlopa” maluca a discutir
uns com os outros. Depois íamos todos a caminho da cantina beber
mais uma cerveja e reviver as peripécias daqueles famosos jogos
de onze contra onze. Quando deixamos Nangade e partimos para Moatize,
deixamos a bola aos putos, uma bola que já tinha levando tantos
pontapés dos “ blancos” que achamos que era chegada
a altura de a deixar aos putos negros. Deixamos o “mato” e
Cabo Delgado, lá onde a tropa, pouco a pouco ia perdendo o
controlo da guerra, lá onde se morria de solidão, de
medo, de saudades e por vezes de uma bala.
Em Moatize não perdemos o contacto com as crianças, eram
centenas à porta do quartel, todas as manhãs, esperando
um resto de comida. Doía-nos a alma, ninguém ficava
insensível ao espectáculo matinal das crianças a
nos pedirem comida, encostadas ao arame farpado. Arranjamos uma grande
lata de vinte litros e a todas as refeições lá ia
um de nós com o que tinha sobrado a caminho da porta de entrada
do aquartelamento, distribuir a comida aos putos. Não me lembro
se falhamos algum dia, de todos aqueles dias que passamos em Moatize e
foram sete meses. Ainda hoje, não deixei de pensar neles e
nelas, naquelas crianças às quais as autoridades tentavam
ensinar o Hino de Portugal, mas às quais não davam de
comer nem de beber. Hoje, os que conseguiram sobreviver vivem num
país livre, questiono-me se teriam chegado a adultos.
O maior impulsionador destes actos sempre foi o Sousa. Ele, que quando
chegou a Portugal, depois de ter vivido a guerra em Moçambique,
entrou para um convento Franciscano, voltou para África, para
Angola, passados alguns anos, para uma Missão no norte da
ex-colónia e onde ficou durante vinte e dois anos. Revejo-o de
tempos em tempos, quando me desloco ao Porto, dou um salto a Barcelos e
reencontro-me com o Frade Sousa…à porta do convento para
onde ele se retirou, cheio de mazelas africanas.
Aqui fica registada a frase que sempre repetias, quando vias as
crianças famintas, de dentes brancos, barrigas dilatadas,
umbigos deformados e o sorriso nos olhos.
Porquê ….eles meu Deus?
PS. - Este ano não foste ao almoço da nossa Companhia, as doenças africanas deram-te cabo dos ossos….Esperamos por ti no próximo almoço…esperamos todos. Obrigado por seres meu amigo.
Apontamentos – Muidumbe – Nangade – Moatize – Porto -Barcelos - Portimão
Portimão – Julho de 2017
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