
A Guerra e Outras Coisas. ( 3)
Moçambique – Agosto 1967 – Outubro 1969.
Apontamentos – Moçambique-1967-1969 / Paris – 1970 – 1980 - Portimão - E Cu de Judas.
Eu era forte, não fisicamente, nunca o fui. Era forte na maneira
como encarava a guerra, Estava em África e não podia
contrariar esse facto. Disseram-me que íamos defender um
território português, não acreditei. O meu
país começava em Caminha e acabava em terras algarvias, o
resto era paisagem. Evidentemente que tive contactos com a malta que
voltava da guerra ultramarina, de todas as guerras africanas, e
não só. Não falavam muito os ex-combatentes do
ultramar, contavam os bons momentos, os maus quase nunca, ou mesmo
nunca. Voltavam vivos e isso bastava.
Eu encarei a guerra como uma passagem para outra dimensão. Vivi
os trinta e quatro meses de tropa como se cada dia fosse o
último. Não fui um exemplo, nem nunca o tentei ser. O
melhor exemplo disso mesmo, era o meu fardamento. Usei-o durante todo o
serviço militar em África, tal e qual como me foi
entregue, nem uma bainha das calças foi subida, nem uma camisa
apertada e os calções pareciam uma mini-saia. Quanto
tinha de alinhar numa coluna militar, não tinha qualquer
importância se a minha viatura era a primeira ou a última,
essa lotaria nunca teve qualquer importância na minha maneira de
encarar a guerra e muito menos a minha sobrevivência. Nunca fui
um herói, nem quando, voluntariamente, substituía um
camarada que tinha de alinhar na frente de uma coluna, porque esse
tinha filhos, ou porque era casado, ou porque estava doente. Como me
disse muitas vezes o Capitão, Pereira Monteiro, o comandante da
nossa companhia, você, ele tratava todos por você –
Você é um bandalho. Eu cumpria tudo a que era
obrigado...sem mais. Ninguém me obrigava a fazer a cama todos os
dias, não a fazia. Ninguém me obrigava a fazer a barba
todos os dias, não a fazia. Ninguém me obrigava a comer,
o rancho como chamavam àquela mistela, àquela pasta que
saía dos caldeirões, não a comia. Mas, a minha
viatura era a mais limpa, a melhor oleada, a melhor tratada. Cuidava
dela como se fizesse parte de mim, eu falava com a minha Berliet.
Dei-lhe um nome, escrito no pára-choques dianteiro – BETA
– em letras garrafais. O sargento Oliveira, no dia em que eu
estava a pintar o nome, perguntou-me.
- Escuta lá ó Nobre, a quem foi que pediste autorização para fazeres essa merda.
Não respondi e continuei a pintar, tinha a G3 não muito longe, encostada à carroçaria da viatura.
- Estou a falar contigo!
- Este é o nome da minha avó, é uma homenagem.
- Vou participar ao Capitão.
- Participe também ao caralho.
Foi a quarta carecada, das muitas que apanhei, penso que foram catorze,
já não me lembro muito bem. Expliquei ao capitão
que aquele era o nome da minha namorada, e que não via mal
nenhum em o ter pintado. Respondeu que a viatura era uma viatura
militar e que nada deveria ser alterado na dita cuja. Perguntou-me, com
um sorriso nos lábios
– Namoram há muito tempo?
Respondi, mais ou menos. Mandou-me cortar o cabelo e não me
disse para apagar o nome. Esse ficou durante todo o tempo em que
estivemos no mato e quando deixamos as viaturas para serem entregues
à Companhia Militar que nos vinha substituir, o nome ainda
lá estava pintado.
Portimão - 05 de Setembro de 2017.
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