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Foram voluntários à força. Agora, mais do que nunca,
precisam que lhes dediquem tempo. Nem que seja para os ouvir resmungar. Mas de
preferência para os fazer sorrir Tudo normal. De cima a baixo. Cabelos brancos, olhos azul do
céu, sorriso maroto e andar desembaraçado. Aparentemente. A perna direita é uma
prótese. Das melhores que se fazem no mundo, "quer ver?" Esta é uma
coisa que fica, como se não vendo, não tocando com as mãos, fosse impossível
acreditar que é real. "Mandaram-me para lá puto e fiquei assim, agora têm
de me pagar o melhor, não é?" O melhor, no caso de Carlos Noivo, é feito em Hamburgo e
"custa o preço de um Audi". Próteses a que só alguns têm direito,
muito poucos, dependendo do grau de deficiência atribuído pela Junta Militar,
mais do que da barbárie da sua história. No início era a própria Alemanha que
pagava para receber estes amputados e aperfeiçoar uma indústria na qual é
mestre, fruto de tantas guerras. Hoje é o Ministério da Defesa que paga a conta. A guerra terminou há mais de 40 anos, mas para estes
soldados a vida é uma eterna batalha. E um homem não chora, pelo menos os de
antigamente. Fazem voz grossa, dizem que matam e esfolam, mas são uns corações
de manteiga. Desde que não se pressione o gatilho. E o gatilho sabe Deus o que
poderá ser. Há os que têm golpes visíveis, escondidos debaixo da roupa ou por
trás dos óculos. E os stressados pós-traumáticos, sem uma cicatriz na pele mas
desfeitos por dentro. Num e noutro caso quase sempre preferem sofrer em
silêncio porque falar é pôr o dedo na ferida e a ferida precisa de sarar, tem
de sarar. São 13 mil só na Associação dos Deficientes das Forças
Armadas (ADFA). E não estão lá todos. Estima-se que tenham ficado 30 mil
feridos em combate. E mais 40 a 50 mil homens afectados por stresse de guerra.
Tantas décadas depois continuam a chegar à instituição processos e pedidos de
ajuda para qualificar combatentes da guerra colonial como deficientes das
Forças Armadas. Gente à procura de uma pensão, de uma vida mais digna, se não
para si, pelo menos para os seus. O Estado atrasa-se na qualificação e as
indemnizações materiais teimam em não chegar. Há casos em que as compensações
são atribuídas a título póstumo. A geração que
fechou o Império tem hoje uma média de 67
anos. Já não são miúdos e carregam,
além da limitação física, o peso da idade.
Com os anos, há combates que o corpo já não
consegue travar. O desporto, que
era um dos pontos de união, foi substituído pela sesta.
Hoje, "muitos
ficam em casa", conta o senhor Janeiro, responsável pela
delegação de
Lisboa. Esta é agora a maior dificuldade: "Fazê-los sair
à rua é uma
luta." As mulheres, muitas delas ex-enfermeiras, são as suas
cuidadoras.
Mas estão também a precisar que tomem conta delas. Casas
fartas: eles delas,
elas deles. Vale-lhes o sentido de humor. Negro, é certo, para
exorcizar raivas
antigas. E contemporâneas também. Não é para menos, a realidade é desconcertante: um grupo de
ex-combatentes deficientes das Forças Armadas - cegos, paraplégicos, tetraplégicos,
amputados - organizou um dia de festa, com piquenique e passeata pela marginal.
Enquanto, cá de cima, alguns contemplavam o mar, perto da Parede, concelho de
Cascais, passou de carro um presidente de câmara. Pouco depois chegou alguém a
pedir para retirar o grupo do local. Porquê? "O senhor presidente diz que
dá mau aspecto para o turismo." Estes militares também preferiam ter o aspecto de pessoas
absolutamente normais. "Eu queria mostrar os meus olhos. Não queria andar
de óculos escuros", lamentava-se dois dias depois desta conversa o
presidente nacional da ADFA, José Arruda. Além de cego dos dois olhos, ficou
sem um braço num acidente com uma granada. A última coisa que se lembra de ter
visto com olhos foi "uma carta cor-de-rosa" que levava consigo para
onde quer que fosse, escrita pela sua namorada, hoje mulher e mãe dos seus dois
filhos. Arruda vai interrompendo a conversa para dizer que não quer
falar de si, prefere falar da instituição. "Parecemos todos mal
humorados", diz. "Empurraram-nos para a guerra, agora precisamos de
atenção." As necessidades destes ex-soldados não são iguais, mas há uma
comum a todos: precisam de não ser esquecidos. O presidente da ADFA (que tem 12 delegações, incluindo
Madeira e Açores), sabe isso melhor que ninguém e quer estar em todo o lado,
fazer lóbi. "É importante porque quem decide é o poder." E é esta a
via sacra dos veteranos, fazer- -se lembrar. Dentro de meia hora estará com o
ex-Presidente da República general Ramalho Eanes e entretanto já se certificou
de que uma coroa de flores em nome da associação chegará à viúva do almirante
Vítor Crespo, que faleceu hoje. Dois dias antes, o discurso institucional do segundo
vice-presidente da ADFA, Lopes Dias, cego, quase caiu por terra à hora de
almoço, onde muitos dos associados se juntam numa desordem saudável. Quis desde
o início mostrar que a associação é apartidária e "tem o apoio de todos os
políticos". Mas a direita e a esquerda vieram à baila mais cedo que o
previsto. Falavam abertamente de Sócrates, da manifestação organizada em 2008
que mobilizou milhares de deficientes prestes a perderem direitos conquistados
a duras penas, de Salazar e de uma política incompreensível para defender ainda
hoje não sabem o quê. Sorridente, Paula comanda o refeitório: "O que é que
vai ser? Carne de porco com esparguete ou bacalhau à Brás?" Sandra recebe
e serve as sobremesas. O estômago tem muita importância para estes homens, que
comem pelas emoções. Mas qualquer civil pode vir almoçar à sede da ADFA, na Av.
Padre Cruz, em Lisboa, na certeza de que além de uma refeição completa vai
alimentar-se de uma realidade que vive escondida e é desconhecida da maioria,
nesta dimensão. O dinheiro é bem-vindo. Na ADFA quase todos são voluntários. Mas mais nunca é de
mais e aqui é fácil entender porquê. Embora a maioria tenha aprendido a ser tão
autónoma quanto possível, há coisas que um cego ou um tetraplégico não
conseguem fazer, como cortar um bife, levantar uma colher, um garfo ou uma
chávena de café "com cheirinho". São gente que aprendeu a depender da
boa vontade dos outros. Mas não são apenas estes que precisam de ajuda. "Tu
tens andado bem, Lopes, tens andado benzinho? Eu sofro muito, já cá não ando a
fazer nada." Raimundo foi para Angola e aos 22 anos levou um tiro no meio
da testa. Ficou dez meses em coma e 13 sem falar. Agora, já com esta idade, tem
medo de não aguentar mais uma intervenção cirúrgica. Os camaradas gozam-no e
ele responde: "É, estou parvo em como a bala não fez ricochete!" As histórias são intermináveis. Mais de 92% dos homens que
foram para a guerra eram praças. Muitos não tinham sequer a 4.a classe. Foram
estes homens que fizeram a ADFA logo a seguir ao 25 e Abril (14 de Maio de
1974) e conquistaram muitos dos direitos hoje adquiridos não apenas para os
deficientes das Forças Armadas, mas também para a sociedade civil. No entanto, continuam a existir realidades que ultrapassam a
ficção. As próteses dos deficientes militares, grande parte pernas e olhos, são
compradas através da central de compras públicas do Estado. Ou seja, uma perna
ou um olho, que qualquer técnico acredita que deveriam ser tratados como uma
impressão digital, exigem o lançamento de um concurso público. Das três casas
candidatas, ganha a que oferecer o preço mais baixo. Já houve resultados
desastrosos. Um militar recebeu um olho tamanho standard, metido à força dentro
da órbita. A operação valeu-lhe uma valente infecção e um internamento que só
por sorte não teve consequências mais graves. Mas não foi caso único. Outro militar contou que está à espera de uma perna há mais
de um ano. As próteses, que podem custar, em média, 7 mil euros, têm de ser
trocadas de dois em dois anos e muitas vezes têm de ser afinadas. Este
engenheiro de 75 anos não quis ser identificado porque há amigos e familiares
que até hoje não sabem que não tem um dos membros inferiores. Foi sempre
seguido pela mesma casa, porque se trata de um processo "um bocadinho
cirúrgico". No seu caso, um desgaste de cinco milímetros estava a
provocar-lhe graves problemas de coluna e também na perna boa. Acontece além
disso que a prótese que está a usar era a mais barata do concurso e não a feita
na casa que sempre o seguiu e já conhece o seu corpo de cor. "Isto não é a
mesma coisa que comprar arroz e batatas", diz. As consequências não se
fizeram esperar: dores agudas e coxear como nunca. "Há sempre afinações
necessárias. Já imaginou o que é entrar numa sala de conferências, tudo em
silêncio, e ouvir-se um rec-rec-rec? Não vou levantar o braço e dizer:
desculpem, é da prótese." Este problema ainda não está completamente sanado e é apenas
um dos que o ministro da Defesa, José Pedro Aguiar-Branco, se comprometeu a
resolver definitivamente. Outro tem a ver com a requalificação do estatuto de
deficiente das Forças Armadas, nomeadamente naquilo que são os afectados pelo
stresse pós-traumático. "Os afectados pelo stresse pós-traumático ficaram
esquecidos, mas a verdade é que eclodiu na nossa cabeça algo muito
estranho", diz José Arruda. Este algo muito estranho pode levar à
depressão e pode levar a matar. Ou apenas a discussões que fazem voar próteses
e impropérios até à chegada da GNR, como aconteceu há uns anos na sede da ADFA.
Mas nessa altura eram todos bons rapazes. Calcula-se que ainda existam cerca de 1500 processos por
resolver. É preciso eliminar capelinhas, que são muitas. E o trauma de ter
morto um camarada com uma G3, na penumbra da noite, porque "era suposto
atirar em tudo o que mexesse", e ter ficado coberto com os bocados do seu
corpo - continua até hoje a correr para debaixo do chuveiro para se esfregar
amiúde -, não se compadece com burocracias. Mas há mais terror: como o do homem
ferido que magoava tanto a sua mulher, com palavras, com tortura psicológica,
que, quando ficou acamado quis ser ela a "cuidar" dele para,
literalmente, lhe "tratar da saúde". E então bateu-lhe ela,
maltratou-o, fê-lo "pagar" até morrer. Há franjas que ficaram de
fora. Há ex-combatentes com processos pendurados há 12 anos. A assistente social Ana Machado e a jurista Helena Afonso
têm na ADFA um papel muito importante e nem sempre fácil. Ana Machado fica
atenta a problemas de inserção, de pobreza, muitas vezes escondidos. E tenta
fazer a articulação entre a associação e outras instituições, como a
Entreajuda, o banco de bens doados, de medicamentos, bancos alimentares. Agora
está a organizar um grupo de voluntariado e a ajuda que procura estende-se a
familiares, mulheres, filhos e netos de militares. E é preciso ver que nem
todos os ex-combatentes têm pensões atribuídas. Mais um ponto de revolta. Foram para a guerra, uma guerra que não era sua, vieram de
lá sem qualquer conquista, e agora não são tratados como iguais. Estes
voluntários à força têm de correr Seca e Meca para provar que estiveram onde
estiveram. Aqui entra Helena Afonso. O seu objectivo é conseguir o
melhor para aqueles que a procuram, embora o melhor nem sempre seja fácil. Para
ser considerado deficiente militar há dois factores essenciais: ter uma
desvalorização de 30% e provar que aconteceu em campanha, ou seja, em contacto
com o inimigo. Só isto já deixa Borges, Silva e Gameiro a discutir. Estão
os três numa cadeira de rodas, paraplégicos. Borges é tetra e solteiro. Silva
era campeão de basquetebol e foi dado como morto. Gameiro teve um acidente a
caminho da guerra, onde nem chegou, e casou com uma mulher onze anos mais nova.
Só azares. "Se soubesse o que sei hoje..." Nada os preparou para
aquilo e ainda hoje não sabem muito bem o que lhes aconteceu. E acreditam que
deviam ser todos tratados como iguais. Borges está no lar, é bonacheirão, gosta de conversa e de
passear. Diz que o lar, instalado e gerido pela Cruz Vermelha, já teve melhores
dias, mas não se queixa e não se acomoda. Até onde pode, é ele quem decide,
tanto quanto um tetraplégico pode mandar na sua vida. Silva, que hoje é quem ajuda a mulher, esteve quatro dias na
morgue, enrolado num lençol, "totalmente morto". Foi alguém que viu o
lenço a bulir ao passar e já ninguém dava nada por ele quando um camarada
mandou que lhe dessem uma injecção de morfina e fizessem o que fosse possível.
"És um morto-vivo", diz-lhe Borges. Já lá vão 47 anos. Hoje é
relojoeiro e não há mecanismo que não conserte. Gameiro resmunga o tempo todo. "Eles contam estas
histórias, eu nem sequer fui à guerra e tenho de viver isto tudo." Mais:
"Roubaram-nos tudo." Tudo o quê? "A dança..." E para cúmulo
não foi ferido em combate, como se ter-se metido a caminho tivesse sido vontade
sua. E o calvário continua, num tempo que devia, mais que nunca, ser de afecto. Não os deixaram ser miúdos e "agora vamos mais a funerais". No tempo que sobra é preciso ir a juntas médicas, procurar testemunhas do tempo da guerra, fazer requisições para o Ministério da Defesa, ir a médicos, psicólogos, psiquiatras, advogados, Segurança Social. Como no campo de batalha, cada um encontra a sua estratégia de sobrevivência. José Arruda, cego, amputado, corre com a sua personal trainer e, diz quem já viu, ninguém o apanha. Corre porquê? "Corro para ter alento." Texto inserido no jornal "I" |
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