O Vilas Boas
No serviço militar, e sobretude em zona de intervenção, surgem novas amizades e
estas acontecem por proximidades. Como era Furriel, foi entre esta classe que mais convivi.
Conheci todos os Furrieis do Batalhão, mas foi ao nivel de Companhia que mais proximidade houve,
até porque as Companhias foram dispersas por localidades diferentes.Dentro desta unidade, o nivel
de pelotão propiciava uma maior camaradagem e dentro deste era nas secções que verdadeiramente se
conheciam as pessoas.
Como responsavel por uma secção, dentro do grupo de combate, sempre mantive com todos eles
uma excelente relação humana, muito embora nunca descurando a disciplina, que tem sempre de existir,
especialmente em zona de intervenção do inimigo.
Já tinha escrito, algumas palavras, para contar pequenas histórias vividas com o Pereira e
o Fonseca. Hoje escrevo algumas palavras sobre o Vilas Boas.
O Vilas Boas era um jovem jovial, sempre pronto a brincar com os camaradas, abnegado, que
gostava de se integrar no grupo e sempre pronto para qualquer missão.
No meu pelotão, por estar habilitado para isso, era eu que montava as armadilhas na zona
que o comando de operações me indicava. Sempre que isso acontecia, o Vilas Boas vinha atrás
de mim dizendo-me que seria o meu guarda-costas. Expliquei-lhe , não a montar armadilhas, mas a
noção de segurança, pois nunca deveria ir muito perto de mim e deveria estar sempre atento á
envolvência do terreno.Pela insistência dele, consenti e sempre assim foi quando havia que montar
armadilhas.
Depois de montadas as armadilhas, era feito um croqui com as referencias para sua futura
localização e também para as nossas tropas saberem onde elas se encontravam. Numa dessas situações,
que me ficou na memória, na picada Mueda / Mocimboa do Rovuma, fomos ver, passado algum tempo, como
se encontrava a armadilha.Sai da picada, entrando no mato, e comecei a ler o meu relatório para tentar
perceber onde a tinha montado.De imediato não vi nenhuma referência que tinta apontado, desconfiei
imediatamente da situação e disse ao Vilas Boas para aumentar a distancia entre mim e para se colocar
em posição de defesa e observação.Continuei a andar lentamente e observei, á minha esquerda, uma árvore
cortada, aproximando-me ainda mais e mais cautelosamente, vi um corpo já em adiantado estado de
decomposição.O Vilas Boas imediatamente avançou para junto de mim, e ali ficamos, uns breves segundos,
a observar o machambeiro que , provavelmente, iria vender o fruto do seu trabalho.
Em Mueda o tempo foi passando quando recebemos ordem para irmos fazer uma sobreposição para
Mocimboa do Rovuma, pois a companhia que lá se encontrava tinha acabado o seu tempo de serviço. A distancia
não era grande, no entanto a picada era bastante perigosa e bastante conhecida pelas "plantações" de
minas e emboscadas. A "viagem" correu bastante bem, apenas havendo que levantar uma ou duas minas,
detectadas através da "pica", o esquadrão de cavalaria tinha ido connosco e tinha uma grande experiência
nessa matéria.
Chegamos ao quartel, ou espécie disso, a companhia residente foi-se embora e por ali ficamos á
espera dos chequinhas.
No dia 6 de Setembro de 1967, finalmente, voltamos novamente para a picada para o nosso regresso
a Mueda, a nossa casa militar. Passdos poucos kilometros, sofremos uma forte emboscada em que o meu carro
fica um pouco fora da zona de morte, no entanto dei perfeitamente pelo poder de fogo do inimigo. Quando tudo
se cala, eles e nós, e como sempre tive por habito percorrer toda a coluna para me inteirar se houve
problemas, ouço um camarada dizer " Furriel, suba para a Berliet ", e assim fiz quando me deparo com o
Vilas Boas estendido, já morto, e apenas com uma perfuração na zona do pescoço. O meu corpo ficou
petrificado, no entanto os meus sentimentos eram de raiva, de revolta, de ódio talvez, e de muitos porquês. Lá seguimos
sem mais problemas.Nesse dia não houve cervejas frescas á chegada ao quartel, como era sempre habitual.
O dia era de profunda tristeza, tinha partido mais um dos nossos.Preparou-se o seu funeral e o meu
camarada e amigo Jorge Paklo, arranjou-lhe a campa com a sua identificação.
Não tive mais nenhum camarada a acompanhar-me na montagem e observação de armadilhas.
No período de guerra colonial ( 1961 / 74 ), morreram nas três frentes de batalha, cerca de
9.000 " Vilas Boas ". Cerca do triplo vieram mutilados ou com problemas psiquicos causados pelo stress
de guerra. Nas nossas cidades, infelizmente, vemos ex-combatentes a vaguear por cauas económicas, outros
vagueando sem sentido algum.
Linda-a-Velha, Março de 2016
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